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A volta do que não foi

julho 16, 2008

Entrevista que fiz com José Mojica Marins, publicada na revista Domingo, do Jornal do Brasil, na coluna da Heloísa Tolipan, mais conhecida como ganha-pão. Fiquei com preguicinha de reescrever para o blog, então vai quase na íntegra, sem muita tom wolfice no meio de campo pra chutar que é tua, Tafarel!, d’accord? Fico devendo essa. Beijo nas crianças.

Mojica dá o sangue pelo cinema. Às vezes, literalmente

Por trás dos estoques vitalícios de groselha e das caretas de horror em eras pré-botox, o coveiro Zé do Caixão fez história no cinema brasileiro. Mas, dessa vez, estávamos falando com o criador da criatura, o cineasta José Mojica Marins. O homem de corpanzil inchado, em camisa vermelho-sangue e calça social preta, bebericou um gole da Steinhagen com água tônica, pedida no balcão do hotel, em Campinas, onde repousava antes de pegar a estrada rumo ao primeiro Festival Paulínia de Cinema. Uma última tragada de ar. Clichê. E começou: “Me vi caindo de um palco, com tudo rodopiando ao redor. Escorregava e batia a cabeça. Mil vozes vaiavam, e havia sangue por toda parte”. Olhos arregalados. Em bate-papo exclusivo com a coluna, Mojica narrava o que, a ouvidos incautos, poderia soar como cena de um filme seu. Resposta errada. Tratava-se de um pesadelo do mestre do horror brasileiro, engendrado, na noite anterior, pelo cinema mais macabro que existe – nossa própria mente. Não é de se espantar que sentimentos como medo e ansiedade o tenham dominado horas antes da primeira exibição de seu novo filme, Encarnação do demônio, que estreou, quarta-feira, no Theatro Municipal de Paulínia, candidata à mais nova meca cinematográfica do país. Afinal de contas, não era um pit-stop qualquer em sua carreira. Os 97 minutos de fita fecham a mítica trilogia do mal, precedida por À meia-noite levarei sua alma (1964) e À meia-noite encarnarei no teu cadáver (1967). Um projeto, diga-se, há 42 anos na geladeira – ou, para se estar mais a caráter, no nono círculo do inferno, onde há frio, não fogo – e com seis versões diferentes de roteiro até que o produtor Paulo Sacramento e o roteirista Dennison Ramalho selassem parceria criativa com o diretor. O cérebro, no entanto, prega-nos peças, e o pesadelo do cineasta não teve vez naquela noite. Em vez de vaias, aplausos. Ao que tudo indica, quando lançado, em agosto, à meia noite Zé do Caixão nos levará ao cinema. E nas sessões das 14h às 22h também. São essas as preces – ou maldições, a gosto do freguês – de equipe, patrocinadores e entusiastas do cinema brasileiro em geral. Que seja feita a vontade d’Ele. Para o bem ou para o mal. Ou melhor: para cima ou para baixo.

Zé Celso e Zé do Caixão em Encarnação do demônio

Parece muita coisa. Afinal, Zé do Caixão era o barbecue do cinema brasileiro – e não só para o povo, que lotava as salas em busca de um terror genuinamente nacional, mas também para intelectuais de peso. Dizem que Glauber Rocha, assistindo, na primeira fila, À meia noite levarei sua alma, ruborizou senhoras com uma verdadeira roleta russa de palavrões, de tão entusiasmado com a obra de Mojica. Mesmo assim, mais de quatro décadas se passaram até que o Alfred Hitchcock do Brás (bairro pobre de São Paulo, onde o cineasta cresceu) conseguisse levar “sua melhor obra”, “a bíblia do pavor na América Latina”, como definiu, às telonas. Explica-se. Com o passar do tempo, a carreira de um cineasta pode evoluir, desandar ou tropeçar de um lado para o outro feito bêbado. A de Mojica já teve dias piores. Um dos desafios foi sobreviver à censura política que por pouco não deu cabo à sua carreira em tempos de ditadura. “Achavam que, por baixo do terror, havia a tal camuflagem política. O engraçado é que nem eu, nem os milicas jamais a descobrimos”, disse. Mas o buraco não parava nos porões do Dops. Chafurdava mais. A dificuldade de investimentos no gênero, por exemplo, sempre pesou: “Há um preconceito contra o terror, disso não tenho dúvida. Eu não vou ganhar prêmios que não sejam em festivais temáticos. Sei bem disso”*.    

Nem sempre é fácil discernir criador de criatura. A fala mansa de José, volta e meia, embriaga-se com o tom sinistro de Zé. O cineasta – ou seria seu alter-ego? – conta à coluna três momentos em que ficção e realidade, arranhadas ou não pelas longas unhas, andavam de mãos dadas, em vínculo difícil de esfarelar:

+ No Natal de 1967, ganhou, do funcionário de um necrotério, um pote de vermes achados em corpos humanos. Bela ceia. “Ele achou que ia guardá-lo como prova de afeto.”

+ Em 1982, um médico de Campinas lhe presentou com outro tipo de pote. Dessa vez, havia um feto dentro

+ O pior episódio, contudo, ocorreu há 16 anos. Em Curitiba, foi convidado para um evento, no qual deveria ir caracterizado como Zé do Caixão. “Evento? Aquilo era era uma seita! Tinha trono e tudo, todos estavam pelados, tatuados, barbados, e realizavam um ritual em minha homenagem. Até que me perguntaram se o  melhor a fazer era sacrifício humano ou animal”, disse Mojica. Solução: pôr na cabeça dos seguidores que, enquanto os bichanos tinham energia póstuma, o homem ficava cada dia mais irracional. Moral da história: como sacrifício, dava uma bela marmelada.     

À meia-noite apararei suas unhas

Especulações em torno de um possível terceiro mandato não deixaram a cena. Mas, caso a pessoa política bata as botas, o efelenfíssimo presidenfe do paíf, Luiz Inácio Lula da Silva, pode de antemão saber que tem vez em um filme de Mojica. “Se fizesse uma fita minha, ele com certeza abandonaria o planalto. Penso nele como uma espécie de lobisomem. A lua apareceria e ele se descobriria como o sétimo filho – o amaldiçoado”, confabulou.  

Uma das vontades veladas de Mojica: fazer uma versão fantástica do clássico … E o vento levou (de Victor Fleming, 1939). Scarlett O’Hara, a mocinha interpretada por Vivien Leigh, “não se apegaria à terra coisa nenhuma, e sim ao sangue. De ovelha, boi ou porco. Se for humano, ainda melhor”, o cineasta matutou. Na reeleitura sinistra, a pose de galã de Clark Gable (Rhett Butler) iria por água (ou terra, de preferência a sete palmos) abaixo. Ele seria um sádico, ela, uma masoquista. O mestre do terror arremedou: “Óbvio”.

Em Encarnação do demônio, Mojica reuniu o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, o ator Milhem Cortaz e os ícones do cinema marginal Helena Ignez e Jece Valadão (1930-2006), em seu último papel, além das pontas deluxe do DJ Johnny Luxo e do estilista Alexandre Herchcovitch. Porém, os convidados mais especiais, no entanto, foram as três mil baratasque contracenaram com a novata Leny Dark – acompanhante de Mojica na entrevista. “Foi nossa cena mais difícil. Com ela, descobri que não é só mulher que tem medo de barata. No dia, todo mundo foi de bota, e mesmo assim o pessoal passava longe”, relevou.

O terror bee de Johnny Luxo e Alexandre Herchcovitch

* Ele voltou da tumba, a crítica reconheceu. No encerramento do Festival de Paulínia, três dias após a entrevista com a coluna, Mojica abocanhou, com direito a canino e tudo, sete prêmios com Encarnação do demônio, incluindo o de Melhor Filme.